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Wroclaw 2013

por MPS, em 01.07.14

Uma leitora deste blog comentou o meu primeiro texto e disse qualquer coisa como eu ter de “percorrer muitas milhas” para conseguir escrever algo de jeito. Não sei se foi bem isto que ela quis dizer, porque entretanto muitas outras pessoas comentaram, e perdi-lhe o rasto.

 

Pus-me a pensar que, pelo contrário, sou bastante privilegiada para a idade que tenho. Já percorri muitas milhas, no verdadeiro sentido da palavra: já estive em vários países da Europa, no norte e no sul da América. Já vivi em Roma e conheci cidades que me marcaram. E que me mudaram.

Porque há pessoas, momentos e até lugares que mudam a nossa vida.

Ou, pelo menos, a nossa maneira de ver a vida.

Aconteceu-me no verão passado, quando fiz voluntariado em Wroclaw, num Hospicjum.

 

Na Polónia, um “Hospicjum” é um centro de cuidados paliativos, ou seja, uma espécie de “lar” que acolhe pessoas de todas as idades que padeçam de doenças crónicas em fase terminal, visando proporcionar-lhes as melhores condições no final da vida.

 

Eu às vezes sou uma pessoa bastante fria. Por isso, talvez este texto surja de uma forma demasiado crua, insensível. Se assim for, peço desde já desculpa se ofender alguém, por escrever, à minha maneira imatura, sobre um tema delicado. Pretendo apenas partilhar a minha experiência, porque me fez encarar a vida de maneira diferente.

 

No meu primeiro dia no Hospicjum conversei durante quase uma hora com a psicóloga responsável. Falámos sobre a vida e sobre a morte. Falámos muito sobre os pacientes, mas muito mais sobre as suas famílias. E sobre as crianças que viam os seus pais morrer. Como lidar com elas? Como é que se diz a uma criança que a mãe vai morrer? Ou não se diz? A psicóloga deu-me uma série de conselhos e eu respirei fundo e fui trabalhar.

Se te perguntarem o que é que nós fazemos, responde que ajudamos as pessoas a passar para o outro lado”. Pareceu-me uma frase feita, um cliché, um eufemismo ridículo; mas, não sei porquê, nunca mais me esqueci, e já passou um ano.

 

De manhã, quando estava sol, eu e os voluntários tratávamos das plantas do jardim e aparávamos a relva. Quando chovia, ou ao início da tarde, juntávamo-nos aos poucos pacientes que se conseguiam movimentar, e, na sala de terapia, pintávamos com eles o que nos viesse à cabeça em grandes folhas de papel, decorávamos garrafas com lã de várias cores, esculpíamos pequenas obras de arte a partir de materiais recicláveis.

À tarde, íamos aos quartos, conversar com os pacientes acamados. A nossa função era clara: conquistar sorrisos genuínos, tornar cada dia menos sofrido para as pessoas sem rumo, sem ambições, sem futuro, que estão à espera de morrer. O nosso dever: nunca falar com os pacientes se estivéssemos cansados, com sono, tristes ou de ressaca. Nunca. Porque o Padre Leopoldo, que geria o Hospicjum, acreditava que o modo como nos sentíamos iria transparecer e influenciá-los.

 

Como eu não sei polaco, uma colega traduzia as minhas perguntas e respostas. Havia pacientes numa fase avançada de cancro incapazes de falar e, para esses, tivemos a ideia de levar um computador com vídeos, músicas e fotografias dos nossos países, para os darmos a conhecer e, simultaneamente, conseguirmos interagir.

Por vezes levávamos revistas, que divertiam as senhoras mais curiosas acerca dos mexericos da semana, ou aparecíamos, de surpresa, com a comida favorita dos mais gulosos. Mas nós não podíamos prometer demais. Não podíamos dizer “na próxima semana trago-te um livro”. Porque na próxima semana o paciente podia já não estar lá, tal era a precaridade da sua vida. Quanto muito podíamos sugerir “amanhã trago-te um livro”, e, mesmo assim….

Duas vezes por semana juntávamos todos os pacientes no corredor, mesmo os acamados (porque as camas tinham rodas, eram movíveis) e ouvíamos um dos padres a cantar e a tocar guitarra. E nós, os voluntários, cantávamos com eles músicas dos nossos países.

 

Sabem, há pacientes que eu nunca vou esquecer. O Mr. Wojtek, por exemplo. Ou a Marianna (com dois N’s!). E a Mrs. Mónica. Ele era dos poucos que conseguia andar, com o apoio de uma bengala ortopédica. A Marianna passava os dias no quarto, mas criámos uma empatia que começou com uma frase tão inocente quando empática: “já viu que temos o mesmo nome, mesmo sendo de países diferentes?”. A Mónica também estava acamada, mas gostava muito de conversar e até eu falava diretamente com ela, no meu polaco pouco fluente; adorava os pierogi de carne que nós lhe trazíamos, sorria sempre quando nos via chegar, e eu ansiava a tarde toda para ir ao seu quarto!

 

Um dia, um colega meu decidiu fumar um cigarro, e o Mr. Wojtek foi com ele. Eu trabalhava no Hospicjum há pouco tempo e fiquei escandalizada. Então o senhor está a morrer de cancro e vai fumar? E os enfermeiros, os médicos e toda a staff permitem tal comportamento?

Ao que me responderam, encolhendo os ombros:

- Ele vai morrer. Deixa-o ser feliz.

Tive de ir apanhar ar para perceber que as coisas às vezes não são tão lineares como eu penso, e que é muito fácil julgar precipitadamente. Um cigarro era meio caminho andado para o Mr. Wojtek sorrir. Seria assim tão importante vedar-lhe o acesso à sua fonte de prazer? Para quê?

 

Perguntam-me muitas vezes se não me sentia triste, por a morte ser uma realidade sempre tão presente. Não. Era raro desanimar. Sentia-me bem porque a maioria das pessoas gostava de conversar, e muitas pareciam genuinamente felizes por me ver. As gargalhadas que ouvi soaram-me sinceras, e afastavam qualquer tipo de desalento. Eu acho que fiz muitos pacientes felizes; mas duvido que lhes tenha mudado a vida como eles mudaram a minha.

Houve, sim, situações em que as lágrimas me vieram aos olhos. Lembro-me de um senhor que gemia de dor, por mais medicamentos que lhe dessem. Lembro-me da sua mulher; ela estava lá, ao pé da cama, a sorrir-lhe, a dar-lhe a mão. No dia seguinte, quando voltei, a cama estava vazia. Por muito que essa realidade me tenha chocado, tive um pensamento egoísta: desejei que, se eu estivesse a morrer de doença e com dores insuportáveis, também queria que o meu marido, ou alguém de quem eu gostasse genuinamente, estivesse lá a dar-me a mão.

 

Acho que é um bocado isso, no fundo.

Queremos todos alguém que esteja lá para nos dar a mão.

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publicado às 18:47


1 comentário

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De Fã Louca a 01.07.2014 às 19:06

Não lhes ligues. És linda. Boa sorte.

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