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Mau caminho que sabe Bem
Eu nunca tinha visto ninguém a injetar-se. Se me tivessem perguntado dois ou três dias antes, provavelmente ter-me-ia fingido a maior entendida nesse assunto. Já tinha experimentado umas quantas drogas, mas leves – nada que se comparasse minimamente às injetáveis. Porém, teria mentido para parecer mais experiente do que sou; teria respondido que sim, que já tinha conhecido imensa gente que o faz, que não me metia medo.
A verdade é que fiquei em estado de choque, com vontade de fugir. Curiosamente, os meus pés não me obedeceram, e mantive-me imóvel, especada a olhar. Acho que a embalagem de comida não me escorregou das mãos por um triz.
- Desculpe, menina. Desculpe. – invadiu-me uma raiva surda porque ele estava a pedir desculpa, mas não parava… porque é que isso continua no teu braço? Respirei fundo.
- Eu… eh… - as palavras estavam tão presas na garganta como os pés no chão. – Eu… não tem mal. Quer uma refeição quentinha?
Não me lembro se estava frio. Conhecia bem aquela rua, ao pé da Casa da Música, no Porto. Fazia o mesmo percurso desde que era voluntária. Mas aquilo, aquilo nunca tinha visto.
- Obrigada menina. E, mais uma vez, desculpe. Deixe aqui ao pé de mim, que eu já como.
Pousei a refeição e preparava-me para correr, quando ele perguntou:
- Queres falar?
- Hum… Não tenho muito tempo.
- Senta-te aqui um bocadinho. Quero falar-te dos meus demónios.
A voz do rapaz (ou seria um homem?) arrastava-se. Não me sentei, mas fiquei a ouvir. Não me lembro das palavras exatas, mas disse qualquer coisa do género:
- A puta da minha ex trocou-me por um cabrão qualquer. – fez uma pausa (aquela porcaria continuava injetada, e eu sem conseguir pedir que ele a tirasse. Que situação ridícula: “olhe, desculpe, não quer retirar essa seringa do braço, por favor?”) - Não fui o melhor namorado do mundo. Eu tinha ciúmes e enchia-a de porrada. Mas era porque gostava dela, e ela era minha. Porque sabia que os outros gajos reparavam nela – e ela deixava. Depois fartou-se, a puta. Nunca mais a vi. Mas eu todos os dias vejo a cara dela. Lembro-me bem. São os demónios que encontro antes de dormir.
Não fui nem um bocadinho altruísta. Só me queria ir embora. Queria tanto correr para o Burguer King, enfardar nuggets com molho de queijo, e deixar o homem ali sozinho.
- E os teus demónios, princesa?
Abri bem os olhos e fiquei a pensar na palavra. “Demónios”. Os meus demónios? Só me lembrava de um. Deixei de pensar nos nuggets.
- Tive um. No meu primeiro ano de faculdade. Mas agora acho que já superei. Quando penso nele parece que estou a ver um filme e que se passou com outra pessoa e não comigo, e não dói. – o que eu disse ao rapaz (ao homem?) era tão verdade que me surpreendeu.
- Achas que nunca vais estar aqui, não é?
Não respondi. E fiz aquilo que nunca se deve fazer; julguei e opinei:
- Devias largar isso. Deixa-me ajuda-te. Eu vou pedir ajuda a alguém e vamos levar-te ao hospital.
Nessa noite sonhei com o meu demónio e acordei de madrugada a transpirar. Percebi que a única diferença entre o impacto dos nossos demónios é a qualidade do berço onde nascemos e a família que nos acolhe. O que é que me teria acontecido quando conheci o meu demónio se não viesse de uma família rica e que me ama? Seria assim tão forte, sozinha? Ou seria eu ali deitada?
Não o ajudei.
Nunca mais o vi, ao rapaz da rua Júlio Dinis.
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