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Mau caminho que sabe Bem
Na sexta-feira passada comemorou-se o dia internacional do voluntariado.
Quando, de manhã, cheguei ao trabalho, os meus colegas deram-me os parabéns. Percebe-se porquê: passo 8 horas e meia por dia a trabalhar e, na grande maioria do tempo que me resta… sou voluntária. É por isso que estou sempre a reclamar e a dizer que estou cansada, é por isso que já ninguém me atura a queixar-me!
Da empresa onde trabalho recebo um valor monetário, todos os meses. E sabe bem. Do voluntariado, não é dinheiro que recebo mas, acreditem recebo. E recebo muito.
Sou voluntária na maior associação de estudantes da Europa. Mergulhei nesta aventura no Porto, há 3 anos, pouco depois de regressar do meu período de estudos de Erasmus, em Roma. Atualmente envolvo-me ainda mais na rede, e faço parte da direção nacional.
O que sinto pela Erasmus Student Network é muito, muito difícil de explicar. Vou tentar, porque estando à vontade para escrever sobre (quase) tudo, tenho a incómoda sensação de que devia ser capaz de escrever também sobre esta parte tão importante da minha vida. Já tentei muitas vezes, mas nunca consegui expressar-me.
Às vezes dou por mim a sorrir sozinha, só a pensar na ESN. Outas vezes encontro-me a chorar compulsivamente porque as coisas não correram como eu queria. Mas acho que é mesmo assim, quando se está apaixonada.
Eu tento dar tudo de mim à ESN mas, tenho a certeza, continuo a receber muito mais dela do que sou capaz de lhe dar. Porque a ESN é a maior escola que já frequentei. Aprendo tanto, todos os dias. Talvez achem que estou a exagerar – se calhar estou iludida. Mas eu sinto que ela me torna, cada vez mais, uma pessoa melhor. Faz-me crescer. Faz-me acreditar em coisas que, por vezes, me esqueço. Faz-me sentir que o mundo não tem fronteiras e que temos todos asas muito grandes para voarmos até onde quisermos. Faz-me orgulhar do meu país e da minha geração; dos estudantes e dos jovens adultos que acreditam no Erasmus e no seu encore.
Quando chego a casa, à noite, e me deparo com uma série de emails e mensagens por responder, preciso de respirar fundo, muito fundo, muitas vezes. É que a ESN toma-me tanto tempo que às vezes fico em pânico só de pensar no tempo que ela me toma… mas tomara eu poder dedicar-lhe ainda mais tempo do que o tempo que tenho para lhe dar!
Depois, há o CASA. Sou voluntária no Centro de Apoio ao Sem-Abrigo uma vez por semana. As quartas-feiras à noite são o meu refúgio: esqueço o trabalho, os problemas, até a ESN, ainda que por poucas horas. O mundo à minha volta desaparece. Divirto-me a cozinhar, e fico com as mãos a cheirar muito, muito a comida. Depois, em casa, lavo-as com água morna e muito sabonete – mas isto só de madrugada, porque no CASA não há água quente (senhor Rui Moreira, espero que esteja a ler isto!).
Gosto de ver as pessoas a comer a comida que eu preparamos e distribuímos. Gosto quando fazemos a mais e as pessoas podem repetir, e não gosto mesmo nada quando falta. O CASA e a sua rotina fazem-me feliz: os alimentos que o restaurante Abadia ou que a GNR nos dão, o encontro com os meus amigos naquela cozinha minúscula que fica inundada quando chove, o sorriso das pessoas quando gostam da comida, as piadas que trocamos e a sensação de que fizemos alguém feliz, por muito pequeno que tenha sido o nosso gesto.
Assim, e apesar de serem organizações completamente diferente, o CASA é como a ESN. Eu é que sou a voluntária, mas o que recebo é sempre muito mais do que o que dou.
Por isso, da próxima vez que eu me queixar de que estou cansada, de que trabalho muito, de que não tenho vida social, nem tempo para nada… podem rir-se de mim e mandar-me à merda. Porque a verdade é que tenho tudo o que quero, e muito mais do que mereço.
Se o mundo é um T1, o Porto é um T0.
É uma Grande cidade demasiado pequena e, por isso, encontramo-nos todos na mesma divisão. Encontramos quem queremos, e quem não queremos, nos sítios do costume.
Viver nesta cidade-aldeia é uma faca de dois gumes. Se, por um lado, esta sensação de proximidade nos faz sentir bem, por outro pode tornar-se e extremamente irritante.
Sobretudo à noite.
Aos 20 e poucos anos queremos aproveitar o fim de semana para sair à noite. Descemos até à baixa e, embora queiramos variar, não variamos assim tanto. Experimentamos novos bares (há sempre novos bares a abrir no Porto), mas andamos sempre por aquela zona: Cedofeita, Galerias, Passos Manuel e por aí adiante. Faz-se tudo a pé.
Damos de caras com amigos que já não víamos há algum tempo – e isso conforta-nos. Pomos as conversas em dia e ficamos horas a beber e a trocar ideias. Mesmo quando não tínhamos reservado nada de especial para essa noite, na baixa nunca estamos sozinhos. Há sempre um grupo onde nos podemos integrar.
As mensagens de telemóvel são uma boa ajuda: quando procuramos alguém, temos uma grande probabilidade de essa pessoa estar por perto; mas mesmo quando não estamos à procura, tropeçamos em amigos pelo caminho.
Quando não queremos encontrar alguém em específico, aí é que o Porto nos começa a irritar.
Não é que sejamos más pessoas, anti sociais, ou que gostemos de evitar os outros. Simplesmente, hoje não nos apetece.
É já um clássico aquele sorriso amarelo que oferecemos à pessoa que encontramos na rua e que mete conversa connosco, essa conversa vazia onde um “tudo bem” não é uma pergunta, é um cumprimento.
Ou o ex namorado que exibe a nova namorada mesmo à nossa frente; ou o ex namorado que nos olha com olhinhos de gato das botas porque estamos a ser felizes com alguém, mesmo à frente dele.
Ou quando bebemos um bocadinho demais, porque, porra, é sábado, e trabalhámos a semana inteira, e a língua está solta. Os nossos filtros mentais, que usamos no dia-a-dia para conversarmos delicadamente com o nosso chefe, precisam de descanso e de nos deixar em paz pelo menos nessa noite; queremos ser wild and young and free mas, por favor, sem que a pessoa errada esteja no local errado, à hora errada, a observar-nos.
Não me estou a queixar. Encontrar pessoas aleatoriamente na noite do Porto faz-me, muitas vezes, muito feliz! Não quero que ela mude!
Mas, enfim, às vezes apetece-me que o Porto seja, pelo menos, um T2.
Quando eu era mais nova, havia uma altura do ano em que me sentia triste.
Este fenómeno acontecia entre janeiro e fevereiro, na época dos exames da faculdade. Eram os meses em que mal saía de casa: não tinha aulas, as atividades de Praxe também interrompiam, e o meu namorado e os meus amigos estavam colados aos livros. Mas, como eu nunca fui de estudar muito, o tempo real de estudo era ínfimo comparado com o tempo passado a pensar noutras coisas e a procrastinar.
A minha mãe dizia-me que eu me sentia triste porque tinha demasiado tempo livre e pensava muito. Que quando temos muitas coisas para fazer, não temos tempo para nos sentirmos tristes.
A minha mãe estava errada. Hoje vivo uma vida muito ocupada e continuo a sentir-me triste de vez em quando. Descobri que não é preciso termos demasiado tempo livre: há sempre tempo para estar triste, mesmo quando não há tempo para mais nada.
Também descobri que tenho vergonha de mostrar tristeza.
Nós, os jovens adultos, gostamos de pessoas felizes. De sorrisos confiantes, de orelha a orelha. De gargalhadas estridentes, de fotografias no facebook, na praia, rodeados de amigos; de hastags que referem que amamos o trabalho, o casamento, a família e o mundo cor-de-rosa no geral.
Pelas pessoas tristes, sentimos pena. Queremos que se afastem. A sua presença causa-nos desconforto.
Sim, eu prefiro sorrir, empinar o rabo, passar a mão pelo cabelo e olhar as pessoas de lado porque, aparentemente, transpiro auto estima, do que admitir que estou triste.
Também prefiro a Mariana de olhos arregalados e sentido de humor apurado do que a Mariana que chora. Sou uma pessoa de choro demasiado fácil e isso leva-me a crer que a maioria das pessoas que me conhece mal e me vê chorar, me acha fraca.
É que chorar seria bom se pudéssemos fazê-lo sozinhos no nosso quarto, sempre acompanhados de quem nos ama ou se as lágrimas fossem invisíveis. Sendo bem visíveis, sobretudo para quem fica com os olhos vermelhos e muito brilhantes (não vou falar do ranho, que isto é um blog sério), se as sentimos a correr pelas bochechas, contra a nossa vontade, num ambiente em que toda a gente está feliz, somos o foco das atenções.
E o alívio em deitar tudo cá para fora sob a forma de água salgada transforma-se em constrangimento por destoarmos do ambiente festivo.
Por fim, cheguei à conclusão que estar triste me faz sentir culpada. Tendo uma vida privilegiada em comparação com a de muitas pessoas, tenho perfeita noção de que me deixo afetar por episódios que, racionalmente, sei serem irrelevantes.
Os meus problemas são insignificantes mas têm o tamanho do mundo.
Às vezes precisamos de apanhar um grande susto para, finalmente, agirmos. E isso é um bocadinho triste, porque podíamos ter feito tanto, tão mais cedo.
No passado dia 4 de outubro celebrei 23 anos e resolvi ir dar sangue ao IPO do Porto. Não me orgulho de dizer que foi a minha primeira vez. Até ao meu aniversário, arranjava sempre desculpas, algumas mais válidas que outras, para não o fazer.
Ou porque não tinha tempo.
Ou porque tinha feito sexo com mais do que uma pessoa em 4 meses.
Ou porque tinha medo de descobrir que tinha uma doença grave.
Ou porque temia que me acontecesse o mesmo que a alguns amigos meus, que desmaiaram ou se sentiram mal durante a dádiva.
Ou porque não pesava 50 kg, o peso mínimo exigido para os dadores.
No meu dia de aniversário, reparei que estava mais gorda, andava mais perto dos 51kg do que dos 50; sentia-me saudável, tinha feito análises há pouco tempo com resultados animadores, e percebi que já nada me impedia de o fazer. Nunca tive medo de agulhas, nunca me fez confusão ver sangue; tinha, sobretudo, preguiça. Realmente, nunca há tempo quando não queremos mesmo ter tempo; mas há sempre tempo se quisermos de verdade.
O processo é rápido, indolor, e não existe qualquer possibilidade de contrair doenças, porque todo o material utilizado na recolha é estéril e descartável. E – o mais importante – dar sangue salva vidas. Mesmo.
E cada vez mais: basta pensarmos, por exemplo, numa realidade que já não passa despercebida aos portugueses: a incidência do cancro em Portugal está a aumentar, e estima-se que, todos os anos, no nosso país, morrem mais de 25 mil pessoas da doença oncológica.
Dar sangue foi uma experiência muito interessante. Primeiro, porque me deram bolachas de chocolate – antes e depois de me injetarem, para garantir que não me sentia mal. Depois, e agora escrevendo num tom mais sério, porque as enfermeiras que me receberam no IPO foram extremamente simpáticas, porque as condições em que é feita a dádiva são excelentes, porque não custa absolutamente nada a não ser 20 minutos do nosso tempo, deitados numa cadeira reclinável, com música de fundo e a televisão ligada.
Mas, apesar de ter corrido tudo tão bem comigo, no IPO do Porto as notícias não são animadoras: o presidente do instituto revelou, em março, que houve uma redução significativa de dádivas de sangue no último ano, e apelou à comunidade que se voluntarie para ajudar a suprir as necessidades desta unidade de saúde: é necessário elevar em 12% as doações, num mínimo de 40 colheitas de sangue por dia, para o IPO ser autossuficiente!
Eu já sabia disto tudo, e mesmo assim, nunca tinha dado sangue. Que vergonha.
Na sala de espera, enquanto devorava as bolachas de chocolate que me ofereceram, comecei a ler um dos panfletos que estava em cima da mesa. Dizia assim:
“Dar sangue é um dever cívico”.
Quando ouço falar em “dever cívico”, lembro-me sempre do direito de voto. Das campanhas para diminuir a abstenção, que referem que, mais do que um direito, votar é um dever. Lembro-me dos meus amigos, jovens adultos que insistem que, se não votarmos, não nos podemos queixar das políticas implementadas pelo governo. Das pessoas que sentem uma “obrigação moral” em cumprir o seu dever e, por isso, se levantam da cama ao domingo de manhã, para votar. À minha volta, parece que quem se abstém é um bocadinho mal visto.
Portanto, cheguei à conclusão que a grande maioria dos meus amigos (eu incluída, até ao passado dia 4), se levanta da cama a um domingo de manhã, porque acredita que votar é um dever, é uma obrigação, e porque quer ter influência na escolha dos políticos que lideram o país, visto que as suas decisões nos afetarão diretamente. Mas, para dar sangue, não nos levantamos da cama. Parece que dar sangue não acarretas essa “obrigação moral”, esse “dever”. Como se não nos influenciasse diretamente.
Dar sangue não vai fazer com que o governo se altere e as políticas passem a ir de encontro ao que desejamos. Não vai.
Dar sangue só salva vidas.
E, sim, pode afetar-nos diretamente.
Ou se calhar não, porque, enfim, as coisas más só acontecem aos outros. Não é?
Vamos chamar à pessoa A, Amílcar. A, de Amílcar, parece-me bem.
De certeza que também conhecem um Amílcar. Ele tem um sério problema no que toca a relações: não é capaz de estar sozinho. Não estamos a falar de alguém que aprecia manter relações sexuais com todo o ser humano do sexo oposto que respira, não; o Amílcar gosta de relações, apesar de não lhes chamar esse nome. Gosta de ter uma mulher sempre à sua espera, segura. Para mimos, beijos, sexo e um pouco de conversa, quando calha, mas, sobretudo, para ter a certeza que não está sozinho.
Têm um animal de estimação? Às vezes passam dias sem lhe dar atenção, mas sabem que, quando chegarem a casa, ele está lá à vossa espera, de cauda a abanar para vos receber com carinho? O Amílcar gosta de ter à sua espera, em vez de um cão, uma mulher; no fundo é quase a mesma coisa: menos peluda, à partida, mas as lambidelas mantém-se.
O Amílcar conheceu a mulher B, a Beatriz, numa festa de um amigo. Alta, magra, de olhos grandes e verdes, e corpo de modelo. Como esse era um dos raros momentos da sua vida em que não namorava, achou que seria perfeito iniciar uma relação com ela. Afinal, era bonita, se os vissem juntos, passava uma boa imagem.
Como faz sempre que se aventura numa nova relação, decidiu pôr os pontos nos Is. A Beatriz não pode aproximar-se / falar / tocar ou respirar a menos de 20 cm de outro homem. Não pode aceitar bebidas de ninguém, nem comentar publicações de amigos nas redes sociais, e ai dela que fique mais de 10 minutos sem lhe responder a uma mensagem! Isso não se faz.
O Amílcar pode fazê-lo, claro, mas isso é porque tem entre as pernas o que a Beatriz não tem (ao nível físico, porque, no sentido metafórico, não os tem, de todo). Além disso, é preferível evitar fotografias de ambos demasiado próximos no facebook. Porque o Amílcar gosta de ter as portas abertas, para o caso de surgir um pôr-do-sol no horizonte. No fundo, a Beatriz namora com o Amílcar, mas o Amílcar não namora com a Beatriz. Oficialmente, claro, são muito felizes.
É que ele gosta de olhar para outros cães. Para outras mulheres, desculpem, enganei-me. Volta e meia aparece uma muito bonita, a C, chamemos-lhe Carla, e o Amílcar fica fascinado pela sua aparência e tenta seduzi-la. Fazem sexo (e pouco mais, que o Amílcar não é muito dado a mimos, é sexo bruto, apenas), ele jura que não tem namorada mas, pelo sim pelo não, é melhor não assumir o que se passou, é um segredo só deles!
Claro que o mesmo segredo é partilhado com a Diana, porque ela também é muito bonita, desta vez é de outra raça, é loira e não morena e, enfim, um homem tem de experimentar de tudo! Diz à Diana que não tem namorada, que ai dele meter-se em relações, é um homem livre e odeia compromissos mas, pelo sim pelo não, não vamos contar nada a ninguém!
Quando bate a saudade, ou não há mais ninguém disponível, o Amílcar telefona ao cão oficial. Desculpem, à namorada. E a Beatriz tem a certeza que ele só tem olhos para ela, por isso, é vê-la de língua de fora a saltar-lhe para o colo, sempre que ele quer.
Au, au.
Já passou algum tempo e por isso, para ser sincera, não posso jurar que a ideia que tenho tua é real. Provavelmente, a minha mente confunde-a, misturo pessoas e expressões, torno-te, sem querer, diferente do que és.
Do que me lembro mais nitidamente é do teu sorriso.
Houve uma altura em que ver-te sorrir me fazia sorrir. Qual silogismo. Se A sorri, B sorri. A sorri. Logo, B sorri.
Mas agora, irrita-me. Gosto tanto dele quanto o odeio.
Acredito, genuinamente, que não é verdadeiro.Tenho a sensação estranha que estás sempre a sorrir, sem motivo, e isso assusta-me. Parece que vives num mundo cor-de-rosa e perfeito... É o sorriso mais bonito que eu já vi na minha vida e, ainda assim, acho que é hipócrita.
Dá-me vontade de te abanar e gritar “pára, pára de sorrir”, esse sorriso idiota, que vai do Porto até à lua (e volta, da lua ao Porto). É impossível alguém ter um sorriso assim tão grande.
És como o protagonista de um anúncio a uma pasta de dentes que eu não quero comprar.
Mas a minha perspetiva de beleza também mudou. Quando o teu sorriso me fascinava em vez de me causar desconforto, eu pensava de outa forma em relação ao que me ficava bem.
No nosso primeiro encontro, eu calcei as sapatilhas brancas, as calças de ganga escuras e a sweatshirt vermelha e grossa com carapuço. E eu achava que estava linda. Porque as calças eram de ganga, mas eram justas – e eu nunca usava calças justas! Era a peça de roupa mais feminina que eu tinha.
Eu achava que estava linda e que ias cair aos meus pés.
E caíste.
Mas, nessa altura, eu também achava o teu sorriso lindo e nada assustador. Shame on me.
Os Gunas da Areosa (para quem não compreende o conceito, um “guna” é um “mitra”, em lisboeta, e a Areosa é uma zona do Porto) são um grupo de adolescentes entre os 12 e os 17 anos que, alegadamente, assaltam os estudantes no polo da Asprela, entre a Faculdade de Engenharia e o Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto.
Perante as sucessivas queixas por parte das vítimas, um grupo de rapazes da FEUP decidiu criar uma página de facebook com o objetivo de denunciar cada um dos Gunas da Areosa. Fá-lo através de fotografias e vídeos em que identificam e humilham as crianças, descrevendo pormenorizadamente os assaltos e evidenciando determinados aspetos da sua imagem com o propósito, bem conseguido, de os ridicularizar. Chegam mesmo a tirar fotografias, discretamente, quando os encontram em locais públicos, associando-as a uma mensagem subentendida, “estou de olho em ti!”, numa autêntica missão de espionagem de fazer inveja aos filmes de Hollywood.
Em junho, os Gunas ameaçaram ““arrancar cabelos e cortar dedos até dizerem quem são os gajos que andam a fazer os facebook’s”, segundo o JN. Já eu, gostei muito da ideia dos estudantes da FEUP. Porque quem me conhece sabe que eu aprecio futuros engenheiros (no geral) e engenheiros que dedicam parte do seu tempo a criar humor interventivo (em particular). Com vídeos manipulados e obras de arte de Photoshop, a página conta, neste momento, 39.067 gostos.
O que eu não gosto mesmo nada é de sentir medo ao andar no Porto. E sinto.
Porque, perante todas as notícias divulgadas, agora quando vou estudar para a FEUP, à noite, sinto-me insegura. Não gosto de percorrer aquela zona a pé, porque eu sou lingrinhas e inocente, e eles têm menos 7 ou 8 anos que eu mas, diz-se por aí, têm facas.
Há quem diga que roubam porque vivem em más condições, coitadinhos, são pobrezinhos. Ora bem, tenho uma notícia para vos dar (deixem-me só modificar as definições dos comentários ao blog, para censurar os insultos todos que vou receber depois disto… pronto, já está):
No Porto só passa fome quem quer.
Eu sei, porque faço voluntariado há mais de um ano, e vos garanto que há sempre comida para toda a gente. Quem realmente precisa deve informar-se sobre onde adquirir uma refeição quente todos os dias; nunca falta alimento e, muitas vezes, sobra. E o mesmo acontece com a roupa. Os portuenses mais carenciados pedem-nos roupa e nós damos. Vemos o que falta e prontificamo-nos a arranjar um casaco ou uns sapatos para a semana seguinte.
Por isso, sim, os miúdos podem não viver num duplex na foz, mas não passam necessidades nem necessitam da roupa de marca que roubam. E são espertos: publicam fotografias nas redes sociais com casacos e camisolas roubados, para que possamos ter a certeza dos culpados.
Outro aspeto que me tira do sério é que a maioria deles não sabe escrever. Escrevem “foi” quando pretendem referir-se à primeira pessoa do pretérito perfeito, “sosinho” em vez de “sozinho”, “cumigo”, “complice” e não “cúmplice”, e acentos, nem vê-los. Eu sou de Letras. Fico nervosa com estas coisas. Prefiro que passem uma semana comigo a fazer ditados e a reescrever cem vezes cada palavra errada do que dar-lhes um enxerto de porrada.
Vou seguindo religiosamente a página de facebook dos “Gunas da Areosa” (https://www.facebook.com/GunasdaAreosa), mas continuo sem perceber o que se passa com estes miúdos. Aparentemente, alguns lá atinaram, perante toda esta “pressão social”. Outros foram mesmo detidos pelas autoridades policiais responsáveis.
Mas quem souber mais do que eu, por favor, partilhe comigo a informação!
Uma leitora deste blog comentou o meu primeiro texto e disse qualquer coisa como eu ter de “percorrer muitas milhas” para conseguir escrever algo de jeito. Não sei se foi bem isto que ela quis dizer, porque entretanto muitas outras pessoas comentaram, e perdi-lhe o rasto.
Pus-me a pensar que, pelo contrário, sou bastante privilegiada para a idade que tenho. Já percorri muitas milhas, no verdadeiro sentido da palavra: já estive em vários países da Europa, no norte e no sul da América. Já vivi em Roma e conheci cidades que me marcaram. E que me mudaram.
Porque há pessoas, momentos e até lugares que mudam a nossa vida.
Ou, pelo menos, a nossa maneira de ver a vida.
Aconteceu-me no verão passado, quando fiz voluntariado em Wroclaw, num Hospicjum.
Na Polónia, um “Hospicjum” é um centro de cuidados paliativos, ou seja, uma espécie de “lar” que acolhe pessoas de todas as idades que padeçam de doenças crónicas em fase terminal, visando proporcionar-lhes as melhores condições no final da vida.
Eu às vezes sou uma pessoa bastante fria. Por isso, talvez este texto surja de uma forma demasiado crua, insensível. Se assim for, peço desde já desculpa se ofender alguém, por escrever, à minha maneira imatura, sobre um tema delicado. Pretendo apenas partilhar a minha experiência, porque me fez encarar a vida de maneira diferente.
No meu primeiro dia no Hospicjum conversei durante quase uma hora com a psicóloga responsável. Falámos sobre a vida e sobre a morte. Falámos muito sobre os pacientes, mas muito mais sobre as suas famílias. E sobre as crianças que viam os seus pais morrer. Como lidar com elas? Como é que se diz a uma criança que a mãe vai morrer? Ou não se diz? A psicóloga deu-me uma série de conselhos e eu respirei fundo e fui trabalhar.
“Se te perguntarem o que é que nós fazemos, responde que ajudamos as pessoas a passar para o outro lado”. Pareceu-me uma frase feita, um cliché, um eufemismo ridículo; mas, não sei porquê, nunca mais me esqueci, e já passou um ano.
De manhã, quando estava sol, eu e os voluntários tratávamos das plantas do jardim e aparávamos a relva. Quando chovia, ou ao início da tarde, juntávamo-nos aos poucos pacientes que se conseguiam movimentar, e, na sala de terapia, pintávamos com eles o que nos viesse à cabeça em grandes folhas de papel, decorávamos garrafas com lã de várias cores, esculpíamos pequenas obras de arte a partir de materiais recicláveis.
À tarde, íamos aos quartos, conversar com os pacientes acamados. A nossa função era clara: conquistar sorrisos genuínos, tornar cada dia menos sofrido para as pessoas sem rumo, sem ambições, sem futuro, que estão à espera de morrer. O nosso dever: nunca falar com os pacientes se estivéssemos cansados, com sono, tristes ou de ressaca. Nunca. Porque o Padre Leopoldo, que geria o Hospicjum, acreditava que o modo como nos sentíamos iria transparecer e influenciá-los.
Como eu não sei polaco, uma colega traduzia as minhas perguntas e respostas. Havia pacientes numa fase avançada de cancro incapazes de falar e, para esses, tivemos a ideia de levar um computador com vídeos, músicas e fotografias dos nossos países, para os darmos a conhecer e, simultaneamente, conseguirmos interagir.
Por vezes levávamos revistas, que divertiam as senhoras mais curiosas acerca dos mexericos da semana, ou aparecíamos, de surpresa, com a comida favorita dos mais gulosos. Mas nós não podíamos prometer demais. Não podíamos dizer “na próxima semana trago-te um livro”. Porque na próxima semana o paciente podia já não estar lá, tal era a precaridade da sua vida. Quanto muito podíamos sugerir “amanhã trago-te um livro”, e, mesmo assim….
Duas vezes por semana juntávamos todos os pacientes no corredor, mesmo os acamados (porque as camas tinham rodas, eram movíveis) e ouvíamos um dos padres a cantar e a tocar guitarra. E nós, os voluntários, cantávamos com eles músicas dos nossos países.
Sabem, há pacientes que eu nunca vou esquecer. O Mr. Wojtek, por exemplo. Ou a Marianna (com dois N’s!). E a Mrs. Mónica. Ele era dos poucos que conseguia andar, com o apoio de uma bengala ortopédica. A Marianna passava os dias no quarto, mas criámos uma empatia que começou com uma frase tão inocente quando empática: “já viu que temos o mesmo nome, mesmo sendo de países diferentes?”. A Mónica também estava acamada, mas gostava muito de conversar e até eu falava diretamente com ela, no meu polaco pouco fluente; adorava os pierogi de carne que nós lhe trazíamos, sorria sempre quando nos via chegar, e eu ansiava a tarde toda para ir ao seu quarto!
Um dia, um colega meu decidiu fumar um cigarro, e o Mr. Wojtek foi com ele. Eu trabalhava no Hospicjum há pouco tempo e fiquei escandalizada. Então o senhor está a morrer de cancro e vai fumar? E os enfermeiros, os médicos e toda a staff permitem tal comportamento?
Ao que me responderam, encolhendo os ombros:
- Ele vai morrer. Deixa-o ser feliz.
Tive de ir apanhar ar para perceber que as coisas às vezes não são tão lineares como eu penso, e que é muito fácil julgar precipitadamente. Um cigarro era meio caminho andado para o Mr. Wojtek sorrir. Seria assim tão importante vedar-lhe o acesso à sua fonte de prazer? Para quê?
Perguntam-me muitas vezes se não me sentia triste, por a morte ser uma realidade sempre tão presente. Não. Era raro desanimar. Sentia-me bem porque a maioria das pessoas gostava de conversar, e muitas pareciam genuinamente felizes por me ver. As gargalhadas que ouvi soaram-me sinceras, e afastavam qualquer tipo de desalento. Eu acho que fiz muitos pacientes felizes; mas duvido que lhes tenha mudado a vida como eles mudaram a minha.
Houve, sim, situações em que as lágrimas me vieram aos olhos. Lembro-me de um senhor que gemia de dor, por mais medicamentos que lhe dessem. Lembro-me da sua mulher; ela estava lá, ao pé da cama, a sorrir-lhe, a dar-lhe a mão. No dia seguinte, quando voltei, a cama estava vazia. Por muito que essa realidade me tenha chocado, tive um pensamento egoísta: desejei que, se eu estivesse a morrer de doença e com dores insuportáveis, também queria que o meu marido, ou alguém de quem eu gostasse genuinamente, estivesse lá a dar-me a mão.
Acho que é um bocado isso, no fundo.
Queremos todos alguém que esteja lá para nos dar a mão.
- Doeu?
Eu tinha 21 anos e nunca o tinha feito, por isso é natural que estivesse curiosa.
- Doeu ou não?
Conheci a Heloísa o ano passado, no mês de junho. Não eramos grandes amigas, confesso, mas eu estava ansiosa por ouvir a sua história. A Helô é brasileira e estava a estudar em Portugal. Dizem que, no Brasil, era uma rapariga muito atinadinha: pouco frequentadora de festas, fiel ao namorado, álcool só em casamentos e batizados. Drogas, nem vê-las, nem leves nem pesadas, nem coisas nenhuma.
Mas depois tinha chegado a Portugal e pronto, isto do Erasmus desgraça uma pessoa. Mas lá está, o Mau caminho sabe Bem e, portanto, a Helô estava a aproveitar ao máximo a fuga à rotina. Eu sei, por experiência própria, que os estudantes Erasmus o fazem: fazem o que, em casa, nunca fariam. Tentam. Experimentam. Arriscam. “Perdem a cabeça” e, por vezes, a dignidade.
E é por isso que ela tinha vivido aqui, no Porto, a sua primeira vez.
Já tinha publicado no facebook que o tinha feito, já toda a gente sabia, e contou-me:
- Doeu, sim. Doeu e a minha t-shirt rasgou. E trinquei o lábio com força. Sabes, foi do impacto.
Permitam-me que vos explique: é tradição, no Porto, os turistas pagarem aos meninos da Ribeira para mergulharem da Ponte Luíz I (ou D. Luís, como é conhecida) para o rio Douro. Esses miúdos conhecem a forma mais adequada de mergulhar porque o fazem desde sempre, estão mais que habituados e não se magoam.
Os estudantes de Erasmus não estão minimamente preparados para uma aventura deste tipo. Mas muitos acham que não podem sair do Porto sem ter saltado, independentemente da inexperiência e dos riscos que correm. É um fenómeno engraçado, que um dia pode correr muito, muito mal, e que eu tenho acompanhado de perto por conviver bastante com jovens estrangeiros. Eu digo-lhes “é perigoso”; mas eles querem viver a sua primeira vez. Como a Helô.
Ela tinha o lábio roxo e inchado mas estava orgulhosa da sua proeza. Eu estava surpreendida. Não imaginei que a t-shirt pudesse rasgar-se só com o embate na água. Deve ter doído muito. Tive medo. Imaginei que ela podia ter morrido, criei todo um drama na minha cabeça. Perguntei-lhe se estava arrependida.
- Eu não! – respondeu-me, aparentemente segura de si.
Sinceramente, duvido. Para a Helô, foi a primeira vez e, provavelmente, a última. Não a imagino a repetir a façanha, sob pena de se magoar a sério.
Este ano, por esta altura, a história repete-se e os estudantes Erasmus já estão a planear o próximo salto. Da minha parte, continuo sem ter experimentado, nem está nos meus planos fazê-lo, a curto prazo.
Deixemos isso para os meninos da Ribeira; que eu prefiro-a à segunda à noite sem contacto direto com o rio.
Os portuenses têm um orgulho desmedido em si próprios.
Acreditam que o Porto é a melhor cidade – não só de Portugal, mas do mundo inteiro! – e que os portuenses são as pessoas mais incríveis da história da humanidade. Têm alguma dificuldade em gostar de Lisboa, e, convenhamos, de tudo o que esteja a sul do rio Douro.
As pessoas no Porto têm um sotaque tão acentuado quanto as suas convicções.
E têm uma tendência exagerada para a… não sei bem como dizê-lo parecendo correta. As pessoas no Porto têm uma tendência exagerada para a peixeirada. Para armar a… vocês sabem. E gostam.
Mas também gostam de ajudar. Gostam de receber os turistas (e as turistas), e eu já me apercebi, do contacto que tenho tido com estrangeiros, que às vezes isso até pode parecer assustador! Porque veem um jovem com um mapa na mão e pressupõe que tem de o ajudar. É inato, e é imperativo.
E falam alto. Não como os italianos, mas falam alto!
E dizem muitos palavrões. No Porto não é assim tão raro ver uma mãe a “ensinar” o filho recorrendo a termos que não constam no dicionário. Só quem não anda de metro é que nunca viu os miúdos a serem disciplinados, ali mesmo, com duas ameaças de pares de estalos acompanhadas de palavras que fazem os alfacinhas corar.
O Porto é o Rio Douro e a ponte D.Luiz, são as fontainhas e a ribeira, o Piolho e a Fonte dos Leões; a praia, o surf, e o Estádio do Dragão; a Casa da Música e as caves do vinho do Porto; a Universidade, a praxe e as tunas; a rua de Santa Catarina e a das Galerias e as centenas de bares que abrem e fecham à medida que o Porto vai ganhando ou perdendo popularidade; são os hostels e o D. Henrique; a Avenida dos Aliados e os Clérigos; a Sé, a gastronomia; é Serralves e o Parque da Cidade; é o S.João e a Queima das Fitas.
Mas é muito mais do que isso! Para o bem e para o mal. Estudei no Porto e estou habituada a muitas coisas que sei que as pessoas de outras cidades não estão. A percorrer a cidade a pé, por exemplo. Ou a apanhar o autocarro de madrugada. Ou a vestir o traje académico e senti-lo a cheirar mal. Ou… a cumprimentar o pianista. Toda a gente do Porto sabe quem é o pianista. Ou a mulher da sopa. Lendárias, essas personagens.
Eu nem sequer moro no Porto mas, se me perguntarem, é no Porto que eu moro. Moro em Gaia. E o Porto, o Porto a sério, é muito mais do que o Porto. É Matosinhos e Gondomar e Maia e Valongo e Ovar e São João da Madeira. É quase Póvoa DE Varzim, agora com o metro.
Os portuenses têm um orgulho desmedido em si próprios. São exagerados, egocêntricos.
Admito que podíamos ser um bocadinho – só um bocadinho – menos focados em nós próprios. Mas eu nasci no Porto, estudei no Porto, e, por isso, padeço de todos esses males.
Não há cidade como a nossa, na nossa visão arrogante.
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